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Viagem nas zonas autônomas temporárias da vida cotidiana
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15 de fevereiro de 2024 por Nísio Teixeira  
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Enquanto, ao nome / a fala / a vida do “artista”, estiver acoplado um preço, ainda não teremos arte. Teremos tudo: produto, encalhe, fundo de livraria, ponta-de-estoque, gênio, vernissage, noites de autógrafos, etc., etc. Mas, arte, não. E não me chamem de “Adorno Cover”. O preço iguala desiguais. Uma megaliquidação de um milhão de CDs em um hipermercado tem o mesmo valor que uma megaliquidação de um milhão de garrafinhas-caçulas do refrigerante X. Quem tem dinheiro pode entrar e comprar o estoque e, em seguida, entulhar geladeiras e discotecas. O valor – ou o não-valor ou o desvalor – é o mesmo. Um enólogo voraz tomará o xarope gaseificado, com a mesma voragem que sorve um vinho-safra Y. O megacomprador de CD ouvirá toda sua coleção como um “connaisseur” que leciona na Academia Real. No capitalismo, o poder de compra achata tudo. Das falsas angústias para os ocos divãs lacanianos a hecatombes e guerras sanguinárias. Nesse mundo e neste mundo, não há receptor, apenas glutões e famintos. Quem compra: sabe e existe; quem não compra: alimenta estatística e, paradoxalmente, inexiste. Tudo é produto. Seria ridículo, se não fosse trágico, aquela cena, que, vez ou outra, se reproduz em filmes e esquetes televisivas, do “nouveau-riche”, entrando em um determinado supermercado de arte – galeria, loja, livraria, etc. – e, na mais pura inteligência da ignorância, comprar um “Pablo Picasso”, como se estivesse comprando um par de pantufas para a mamãezinha que está saindo de férias. De My fair Lady! ao arquetípico mito pigmaleônico, tudo é verdade! Pablo Picasso e pantufas têm mais coisa em comum do que sonha a nova vãzissima imaginação. São os indefectíveis processos de idiotização criados pelo Mr. Markentig. Aquelas teorias furadíssimas do 4Ps, 4Qs, 4 não-sei-o-quê: produto, praça, promoção, Pablo Picasso, pantufas, Pigmaleão. Tudo, produto. Tudo, pigmalionismo. Aí, o incauto e culto acusador diz: mas, assim, já é demais! Não há saída! Esse radicalismo nos levará ao fim-do-mundo! Quanta ingenuidade, Menino Prodígio. Há várias e várias alternativas. A principal, sem dúvida, é, ao feitio da teoria da “Zona Autônoma Temporária”, de Hakim Bey, criar “espaços autônomos” para o estudo, a reflexão, a produção, a mostra, a edição, a circulação e a discussão de e sobre arte, livres da gerência e da ganância dos mercados – públicos e privados, locais e transnacionais. Hakim Bey, em sua obra “TAZ - Zona Autônoma Temporária”, lançada pela Editora Conrad, dentro da Coleção Baderna, define: “A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, ‘antes” que o Estado possa esmagá-la”.” Esmagá-la e/ou incorporá-la. Isto é, fora do circuito de produção e de venda, uma TAZ-cultural é a criação, temporária, de espaços alternativos, marginais, independentes e/ou undergrounds, para que o mais vital das artes – de ontem, de hoje e de projeção futura – possa circular sem ter a têmpora posta sob o revólver destrutivo do preço. Lembro-me de uma TAZ que participei no final dos anos 70. Claro que não havia essa designação ainda, a teoria de Hakim Bey é de bem depois. Mas lembro-me de um gesto autônomo realizado pelo casal de artistas, o poeta futurista-concreto italiano Carlo Belloli, e a artista plástica mineira Mary Vieira. Ambos residentes na Itália. Em uma das visitas à Belo Horizonte, Belloli & Mary reuniram um grupo de convidados na antiga boate do Museu de Arte Moderna da Pampulha, fizeram magistrais palestras, mostraram trabalhos seus e de artistas de vanguarda da Europa, conversaram com os convidados e trocaram obras e informações. Não havia, no evento, apoio, patrocínio nem venda de ingresso, era uma iniciativa entre e para artistas e interessados em arte. A zona temporária autônoma foi criada, existiu em uma única noite e foi desfeita. Quem participou, participou. Quem não participou nem ficou sabendo do evento. Lembro-me da minha modesta participação, ao lado do poeta e artista plástico, Luciano Cortez. Nós, dois “novíssimos artistas”, que, na época, engatinhávamos com o projeto de edição do grupo Cemflores. O encontro valeu mais do que um milhão de quinquilharias informacionais. A partir daí, nós, do Cemflores, mergulhamos no estudo, no exercício e na divulgação das linguagens de vanguarda – Futurismo, Dadá, Letrismo, poesia concreta, poema/processo, haicai, arte postal, punk-rock, Internacional Situacionista, música eletrônica, body-art, happening, performance, instalações, livro-objeto, livro-de-artista, grafite, rubber-art, etc. Fizemos, na época, uma exposição de mail-art – “Todos os arquiinimigos do Superman”, com mais de duzentos artistas. À exposição, acoplamos os primeiros shows, origem dos grupos Sexo Explícito, Divergência Socialista e Último Número. Os happenings-performances: “A família do burrinho” e “Eu toco pratos”. E espalhamos, anonimamente, por várias escolas, faculdades e bares, o manifesto: “Júlia, te amo”. Onde, além de uma declaração de amor para uma pessoa inexistente, conclamávamos que as “Júlias” respondessem e criassem novos manifestos. Quem viu, viu. Quem participou, participou. Quem disse “eu te amo”, disse “eu te amo”. Quem se manifestou, manifestou. Não sobrou “memorabilia” para a glutonice dos necrófilos colecionadores. TAZ é: montar e desmontar. Atuar e descansar. Tensão e contenção. A lição é essa. E já foi, há muito, ensinada por Patrícia “Pagu” Galvão: “Por que vocês não vão ler Tarzan, hein? Pelo menos principiariam sabendo que existe uma coisa chamada aventura, descoberta, audácia.” TAZ-TAr(Z)an: a superação do entulho entrópico vendido nos saldões e queimões da vida.