Recentemente, a Folha de São Paulo, publicou, em 12/03/2002, uma mini-HQ, de apenas um quadrinho, de Angelli.
Em frente a uma loja de eletrodomésticos, com as vitrinas entulhadas de televisores, uma família – pai, mãe, filhos & cachorro -, passantes e mendigos assistem a transmissão da imagem do presidente e de sua digníssima esposa.
No recordatário da HQ: “O melhor presidente e a melhor primeira-dama que o Brasil já teve”. A frase remetia à imagem mostrada em todos os aparelhos de TV.
No rodapé, o pai diz: “Está vendo, mulher!? É o país que não presta!”.
Em duas frases e um quadrinho, Angelli conseguiu fazer a síntese arquetípica e atávica do sentimento do chamado “homem comum” brasileiro: “tudo presta. Nós que não prestamos”. “O Brasil não tem guerra, não tem terremoto, não tem maremoto, etc., porque ninguém imaginava o povinho ruim que viria habitá-lo.”. Outra forma de dizer: “O país – leia-se: o povo -, entre tudo e todos, é que não presta”.
Falando, assim, Angelli parece ser mais um filho desnaturado da pátria. E, por extensão, sou um também.
Mas a verdade está furos e furos de distância. Está, paradoxalmente, grudada em nossos olhos. Quase que eu dizia “em nossos corações e em nossas mentes”.
Toda vez que tentamos dizer e agir de forma contrária, a maldita mão existencial nos empurra para o fosso de nossas seqüelas, de nossas mazelas, de nossas misérias.
De Padre Antônio Vieira a Roger “Ultraje A Rigor” Moreira, de Gilberto Freire ao equívoco eurocêntrico de Paulo Francis, de Paulo Prado a Oswald de Andrade. A trilha sonora é a mesma: “a gente não presta”. Por sinal, o tema, mais uma vez, foi glosado pelos Titãs em “Eu não presto”, de Branco Mello & Ciro Pessoa, no álbum “A melhor banda de todos os tempos da última semana”.
É essa, com perdão da estrutura, “alta baixa estima” que nos carrega pelo calvário morro-abaixo.
Esse “não prestar” se transforma, antiteticamente, em um sinal positivo. E o raciocínio se transforma em um quiasmo absurdo e possível: “para quem não presta, o imprestável é o presente do Olimpo”. “Se recebêssemos coisas prestáveis, aí, sim, estaríamos traindo a nossa maldita herança e nossa maldita lavoura arcaica”. Em um cemitério maldito, a maior dádiva é a maldição.
Assim tudo se explica: do caos escolar à volta das epidemias medievais. Da convocação de Ronaldo, que há séculos não joga uma partida inteira, à exclusão de Romário da seleção brasileira. Do sucesso dos “reality shows” ao declínio das novelas”. De um CD custar 30 reais – um sétimo do salário mínimo – e três reais na banquinha do camelô da esquina. E o camelô ainda dar garantia ao freguês. Da loja de 1,99 vender quinquilharia por um terço do similar nacional. E, mesmo assim, o nacional ser inferior. Recentemente, experimentei uma cola em bastão made in China. Produto e embalagem/manuseio são ótimos.
O crime – organizado ou desorganizado – tem armamento X-vezes mais moderno e prático e mortal do que os das nossas forças armadas.
Tudo isso, eu sei, é o famoso “tiro no pé”.
Mas poucos vão além dessa expressão e avaliam se ainda temos pés para serem perfurados.
Ouvi - de um colega professor – um diálogo travado em sala-de-aula. Um aluno reclamava do preço de um livro – vinte reais – e usava um tênis importado de 200 reais. Quer dizer: gastamos dez vezes como pés e não dispomos de gastar um décimo com nossa cabeça.
Gastamos tubos de dinheiro com remédios e nos alimentamos pessimamente.
Não é preciso continuar.
Moramos em um mar de antítese.
Em um turbilhão de pobres riquezas.
Habitamos uma montanha-russa de oxímoros.
Somos pobres-ricos de riquezas-pobres.
Estamos na jaula e as feras passeiam pelas seis pistas em suas máquinas mortíferas.
Estamos na jaula da casa da jaula da TV e o grande irmão dá de ombros para nós.
Ah! que prazer – plagiemos Fernando Pessoa – não sermos nada. Não querermos ser nada. Não desejarmos ser nada.
Ah! que prazer que a dor seja contínua, que não haja intervalo. Que, sendo contínua, sem intervalo, não nos permita um minuto de alívio.
Ah! que prazer saber que – apenas – nós não prestamos.
Ah! que prazer saber que o resto é uma flor de ouro, uma flor de lis, que não possui, para nosso imprestável olfato, perfume.
Aqui fora é frio. Dentro da TV, o presidente e senhora sorriem. Que paz. Que perfeição.
“Vamos, mulher, vamos dar uma volta por aí...”