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A FARTURA DE FRATURAS DA VANGUARDA
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15 de fevereiro de 2024 por Nísio Teixeira  
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“A vanguarda é tida como um incômodo por aqueles que estão felizes com o mundo como está.” (Stewart Home) Há um certo desconforto quando se pensa, no Brasil, na questão Modernidade / Modernismo / Vanguarda. Aqui é mais complexo. Porque, sob a rubrica do Modernismo, habitam Modernidade e Vanguarda. Na Europa, com exceção da Espanha, que também usou, explicitamente, a expressão Modernismo, as Vanguardas tiveram (e têm) rubricas próprias: Expressionismo, Futurismo, Dadá, Cubofuturismo, Surrealismo, Dodecafonismo, Serialismo, etc. Aqui, tudo é Modernismo. Na cova rasa do Modernismo, cabe tudo. Porém nem todo Modernismo é de Vanguarda. Nem toda Vanguarda deseja o status de Modernismo (ou Pós-Modernismo). Às vezes, Modernismo e Vanguarda se integram, se confundem e se fundem. Mas, na maioria das vezes, não. Batem cabeça. O Modernismo (brasileiro) fincou bandeira em questões que o “novelheterno” Romantismo alemão (vide: Friedrich & Wilhelm Schlegel, Novalis, Schelling, Schiller, etc.) já havia difundido: combate às retóricas clássicas (a doença X a saúde), liberdade de expressão, defesa da memória dos povos, etc. Já as Vanguardas – principalmente as chamadas “Vanguardas históricas”. No fundo, todas as Vanguardas – guerrilheiam nas trincheiras da destruição e da construção de um novo momento histórico (ou a-histórico), político, social, cultural, artístico (ou não-artístico), etc. O tempo do Modernismo, por mais “rupturável”, por mais sincrônico, ainda é um tempo cronológico. A ruptura habita o contínuo. Já o tempo das Vanguardas (sabendo: Futurismo e Dadá) é o tempo da fratura. Da quebra irremediável e definitiva. O Futurismo e o Cubofuturismo quebram com os tempos passado e presente, na construção de um “novo” futuro. Ou de uma nova possibilidade de futuro. Daí, o descaminho ideológico de alguns futuristas (italianos). Já o Dadá foi e é uma radicalização dessa fratura (futurista). A quebra é triádica: passado / presente / futuro. O tempo – ou o templo – Dadá é a expressão – ou a contra-expressão – do artista – ou do anti-artista. O tempo (só) existe na virtualidade vital e experimental. Essa virtualidade é, de uma vez, temporal e espacial. Há uma confluência e uma anulação dos tempos (passado / presente / futuro) e uma desterritorialização dos espaços. A ação dadá é “o tempo” – não “um tempo” -, é “o espaço” – não “um espaço”. “A fonte”, de Marcel Duchamp, é o mictório. Mas, também, a escultura escatológica de uma sociedade acrítica, alienada e alienante. “A fonte”, de Duchamp, é um útero ao inverso. Um útero virtual que recebe e elimina, ao invés de receber e gerar. É útero-uretra. É, paradoxalmente, o tempo do excremento e da natividade. É o espaço do escatológico e da gênese. A metáfora duchampiana está no vazio. No anódino do ready-made. Sempre ouvimos a gague, ou o chiste, quando mostramos alguma peça dadá a um neófito. Ele diz: “isso, eu também faço”. “Isso, pra mim, não é arte”. Sábias afirmação e negação. A charada, sé é que há alguma, é essa mesma. Jogar, na cara do olvidado, a sua possibilidade. Ao negar, ao Dadá, o status de arte, se estabelece um novo panteão: o da arte – que nunca se declarou arte – como arte. É. É um paradoxo. Mas é assim que pulamos da ignorância – não da burrice, porque essa não tem salvação – para a virtualidade dadá. A mais “sofisticada” – e aqui há o lastro etimológico de “sofista” (“impostor”) – ação é o que pode ser realizada por todos. Não por eleitos ou divindades. A magia e a mais-valia não são moedas correntes. Mas, aparentemente, são linguagens cifradas, são implícitas e incompreensíveis. Um gesto dadá mostra que elas (magia e mais-valia), não cifradas, nem incompreensíveis, existem no brurará da vida cotidiana. E essa vida só será plena, se amalgarmos – à maneira dadá – temporalidades – ou atemporalidades – e espacialidades – ou não-espacialidades – na subjetividade da existência. O “niilismo” dadá está na vitrina niilista de quem só vê a vitrina edulcorada, decorada e eldorada do fantasma retrô da “morte” cotidiana. Chamar niilista o Dadá é tão absurdo quanto designar racional os inimigos do Dadá. Niilista é quem mantém tudo em forma incondicional de “nada”. O Dadá é (esse) Nada. Longa vida a Duchamp! Longa vida ao Dadá! Ou ao nome que ele tenha hoje! Valeu Mary Vieira!