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Zapeando na câmara-ardente do big brother filosófico brasileiro
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1 de abril de 2024 por Nísio Teixeira  
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Recentemente, esse paradoxo chamado “Brasil” caiu, sub-repticialmente, por terra, outra vez. De roldão, vieram, ao chão, o teto já cupinizado e carbonizado do monumento de papel crepom e prata & os verdes da mulata. Zap-zanzando entre o horto funerário das tevês, chego na encruzilhada de duas sinuosas estradas. De um lado, a Rede Globo e seu “Big Brother Brasil”; do outro, a (local) TV Horizonte e seu programa de entrevistas “Retratos”. De um lado, a acirradíssima (sic!) disputa entre dois ninguéns. Era terça-feira, noite de deletar um dos participantes. A disputa bailava entre o atleta de time nenhum – Kléber – e o antishakespeareano – Bruno. À côté, a desconfortável mediação de Pedro Bial e o “o-quê-que-eu-estou-fazendo-aqui?” da ex-ótima (que saudade da época do grupo Luni) Marisa Orth. Sílvio Santos deve estar soltando fogos em louvor ao seu estilo de animador do tempo perdido. Do outro lado, a apresentadora Vera Bernardes entrevistava o professor de filosofia José de Anchieta. Disputa sem precedente. No mesmo ringue: box tailandês X sofisticação de um jogo de xadrez. Funk X Frankfurt. Frankenstein X Einstein. Um Prometeu moderno X um Rambo pós-moderno. No lado “Big Brother Brasil”, tudo impecavelmente vazio e sem sentido, como manda o figurino do programa de estrondoso sucesso que a Globo comprou – de um grupo holandês - e lutou – e luta com o SBT - pela patente e pela exclusividade. Impecáveis tentativas de diálogos permutadas por balbucios de clones de símiles de pretensos candidatos à oca função de starlets do circo midiático. No lado “Retratos”, um baile do professor Anchieta e os errados e inconvenientes apartes da entrevistadora, que, acintosamente, trocava os pés pelas mãos, Descartes por Sartre. Existência por essência. Real por imaginário. E outras trocas inadimissíveis no mais primário dos diálogos. Mal Anchieta pegava a via da reflexão, rapidinho surgia uma disparatada intervenção de Vera Bernardes. O professor discorria, lúcido e didaticamente, sobre “moral” X “ética”, a apresentadora, de bate-pronto, se prontificava a xeque-matar a reflexão. A precisão era de uma arqueiro zen estampado em cerâmica milenar. E assim, zap-zapeando, fui, aos trancos e barrancos, mixando e fazendo um sanduíche metafísico e indigesto entre o hedonismo midiático e a filosofia. Sabendo que hedonismo não era aquilo. Que filosofia pode e deve ser indigesta. Da indignação, passei para a surpresa; da surpresa, para uma estapafúrdia sensação de feliz fruição. Tive um inútil insight, um saturado satori. Era isso. Tudo que Regina Casé não conseguiu – ou não a deixaram conseguir – em seu “Muvuca” estava, via cabo, sendo, magistralmente, viabilizado. O confronto de díspares pares. O conforto de uma suntuosa cama de faquir. A fraqueza de fraque e a força em topless. “Ah! que fabuloso país o nosso”, plagiei, pela milésima vez, Miles Davis e Caetano Veloso, “que podemos colocar, em cena, mundos opostos” – e complementares – “para cantar em uníssono”. Porém, esse canto desafinava nas duas vozes. De um lado, uma “voz que dizia” era vorazmente silenciada; do outro, o “mutismo tumular e secular da coisa-nenhum” era prontamente servido com a presteza das pragmáticas tramas televisivas. Não havia erro. Presenciava o melhor desse mundo-sem-mundo que é a vitoriosa televisão brasileira. De um lado o conceito, a reflexão; de outro, o exemplo, a ilustração. Um perfeita – e incômoda – gramática expositiva de nossas múltiplas vidas e de nossas infindáveis mortes. Sorridente, passeava, com o controle remoto, pelo labirinto sem necessidade da presença de minotauros. A televisão brasileira. A confluência de mundos. O disparate informacional. O tempo lógico sendo transformado em tempo real. Tudo: uma única coisa. O que há de humano no corpo se monstrualiza; a cabeça de touro e de fera declama os mais perfeitos alexandrinos da cultura. Habitamos uma fabulosa e monstruosa e sábia Minos. Somos miniaturas de minotauros. Somos minudentes minotauros. Assentimos a tudo e a todos. Estamos em tudo e em todos. Entre “a moral e a ética”, somos o vazio conectivo “e”. Uma ponte entre a “necessidade de” e o “descarte para”. No fim, o professor Anchieta não teve tempo de alinhavar uma reflexão completa e o “Big Brother” cerrou suas portas – sem-mais-nem-por quê? – ao som da tecnobaladinha do redivivo RPM. A filosofia voltou para seu sonho de mármore e os BBBs foram fazer uma gororoba. Afinal, depois de espartanos esportes, a fome deve ser tremenda(?!). Sem-mais, o dial passou à deriva e relembrou, enviesadamente, os recorrentes versos do samba de Noel Rosa: “... mas a filosofia hoje me auxilia a viver indiferente assim / nessa prontidão sem fim / vou fingindo que sou rico / pra ninguém zombar de mim”.
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Autoria
Marcelo Dolabela